Paisagens Hybridas
Ivair Reinaldim, 2014



Anne Cauquelin afirma que toda paisagem compreende um “conjunto de valores ordenados em uma visão”, ou seja, a elaboração de uma série de regras, esquemas mentais, elementos organizados e estruturados a partir de certa visão de mundo. Mas como pensar as paisagens híbridas? Elas seriam possíveis? Que sentidos estariam aí implícitos? Débora Mazloum constrói suas “paisagens” dialogando com o material iconográfico de alguns artistas viajantes, europeus que visitaram parte do território brasileiro, registrando elementos comuns e particularidades da flora e da fauna locais, ordenando-os a partir de tradições e doutrinas específicas. Esses estrangeiros contribuíram desse modo para constituir uma ideia de paisagem brasileira, ponto de inflexão de onde parte a jovem artista.
        Débora Mazloum trabalhou, em particular, com imagens provenientes do livro L'univers: Histoire et Description de Tous les Peuples - Brésil, do botânico francês Denis Ferdinand, identificando que algumas das figuras que ilustravam a publicação eram adaptações livres do álbum Travels in Brazil, de Dr. Joh. Bapt. Von Spix e Dr. C. F. Phil. Von Martius, integrantes da missão artística alemã, enviada ao Brasil pelo Rei da Baviera em 1815. A partir de pesquisa realizada junto ao acervo da Biblioteca Nacional, onde edições de ambas as publicações estão depositadas, a artista constatou que algumas paisagens, mais do que simples registros visuais, artísticos e/ou científicos, eram representações recorrentes, repetidas sempre que artistas não puderam visitar in loco determinados lugares do território nacional.
        Paisagens Hybridas compreende não só um diálogo temporal entre gravuras históricas e o estatuto contemporâneo da paisagem, mas também entre o ato apropriativo dos artistas viajantes, para além de qualquer sentido de autoria, e a apropriação de Débora Mazloum, reforçando certos elementos da imagem, ao mesmo tempo em que evidencia outros. A artista insere intervenções na paisagem, às vezes bastante ressaltadas, devido a seu caráter geométrico — antinatural —, às vezes camufladas, em meio aos traços originais reforçados da gravura. Desse modo, contrasta a paisagem idealizada das gravuras antigas com uma paisagem igualmente conceitual, mas articulada com certa corrente teórico-artística brasileira, centrada na noção de “vontade construtiva”, visão que caracterizou críticos e artistas no país, a partir dos anos 1950.
        Os trabalhos aqui expostos questionam algumas tradições de representação da paisagem, bem como as ideologias em torno dos processos de apreensão e construção do real. Nessas imagens, podemos nos perguntar o que de fato é visto no momento em que se elabora uma representação do natural, ou mesmo o que está em jogo quando nos referimos ao “real”. Mazloum reforça que a realidade expressa na paisagem é sempre fruto de uma edição, conjunto de operatividades específicas e de ideologias históricas, que norteiam o projeto artístico. As lupas e demais aparelhos ópticos, presentes em certos trabalhos da artista, reforçam o quanto a realidade torna-se mais “real”, quando vista a partir de certos dispositivos e enquadramentos (técnicos ou teóricos). Trata-se sempre de uma experiência de mediação.