Daniela Name, 2023
Um viajante está sempre à procura do “outro”, mesmo que seja ele mesmo. Ao dar o nome de Outros viajantes para esta exposição, Débora Mazloum construiu uma espécie de “avesso do avesso do avesso do avesso” do artista-viajante, cobrindo com o manto da diferença o rótulo do estranhamento os artistas e pesquisadores, predominantemente europeus, que vieram às terras abaixo da linha do Equador para classificar — em última instância, subalternizar — tudo o que vivia de modos diferentes dos seus.
“Outros” porque não “aqueles”, os das expedições mais conhecidas, como a de Carl Friedrich von Martius (1794-1868) e Johann Baptist von Spix (1781-1826). Os dois vieram à Amazônia no século XIX, e foram capazes de arrancar oito crianças indígenas de nosso território, ainda em fase de delimitação de fronteiras, e sujeitá-las a uma travessia transatlântica. Seis curumins morreram no caminho; dois, uma menina da nação Miranha e um menino da nação Juri, chegaram a conviver por meses na corte de Munique. Lá, destituídos de seus nomes e de sua identidade, foram os “outros” — corpos objetificados, existências confinadas. Mas não tardou o momento em que seus sucumbiram aos vírus e baixas temperaturas do inverno bávaro.
No extraordinário romance O som do rugido da onça, Micheliny Verunschk imagina a história apagada dessas duas crianças, dando voz e pensamento à menina indígena. O que se sabe dela é que chegou por volta de 12 anos de idade em um palácio da Baviera, foi retratada bastante desconfortável trajando vestidos de renda e laços de fita e foi chamada de Isabella Miranha. Na ficção de Verunschk, a autora a imagina conversando com Isar, o principal rio de Munique, que assume uma identidade feminina e consegue contar todas as histórias daquela região, além de saber um pouco da vida daquela criança através do contato com outras águas. Em outros trechos, a menina lembra da forma como foi negociada e arrastada para além-mar, e ainda o horror de ver plantas e bichos serem “desencantados” no papel, transformados em desenho.
Não é difícil reconhecer o quanto deve ter sido espantoso, para povos que acreditavam ser possível dialogar com bichos e plantas, e entendiam a vida como um fluxo integrado e de movimento contínuo, ver esses mesmos bichos e plantas paralisados pela representação. No “desencantamento” como desenhos, eles estariam desprovidos de sua anima. No caso das expedições setecentistas e oitocentistas por aqui, estes não eram desenhos quaisquer. O que orientava as representações da fauna, da flora e dos tipos humanos catalogados pelas expedições era o Systema Naturae (1735) desenvolvido pelo médico e zoólogo sueco Carolus Linnaeus, assim como a ideia de “degeneração” das espécies contida na História natural, de George-Louis Buffon, publicada a partir de 1749.
A exposição construída por Débora Mazloum para a Galeria Ruy Meira, dentro do Prêmio Branco de Mello, apresenta um panorama de trabalhos realizados entre 2014 e 2022, além de uma obra inédita, especialmente concebida para Belém: Viagens filosóficas. A instalação começou a ser pensada em uma residência artística no Lab Verde, em Manaus e em visitas ao Jardim Botânico de Coimbra. Com ela, Débora faz uma investigação a respeito da expedição do naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), que percorreu as Capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Cuiabá e Mato Grosso ao longo de nove anos, e percorreu cerca de 39 mil quilômetros catalogando e descrevendo tanto a flora e a fauna quando os habitantes das regiões visitadas.
Para criar o site specific, Débora criou um jardim (ou laboratório) de aguapés, planta muito importante no ecossistema amazônico. As “mudas”, realizadas em plástico e esculpidas com o auxílio da impressão 3D, receberam tons arroxeados e avermelhados, muito distantes de seus verdes naturais. Brotando de gavetas, prateleiras e móveis garimpados nos acervos de antiquários de Belém e dos equipamentos culturais do Governo do Estado do Pará, as esculturas são misturadas a recipientes de vidro, pérolas artificiais, seixos para aquário e plantas cenográficas. Assim, deslocadas da presunção de verossimilhança, são encharcadas de alegoria e artificialidade, sugando do período histórico que atravessa o trabalho a imensa carga de violência que ele contém, mas, de certa maneira, respondendo a ele com uma ironia insubordinada e burlesca, carnavalizada. Viagens filosóficas ilumina toda a jornada do projeto, e seu desejo de tornar “outras” as interpretações sobre esses processos históricos.
Em texto escrito em dupla, os críticos e curadores Orlando Maneschy e Paulo Herkenhoff procuram elaborar o que chamam de um “esboço da história das artes visuais da Amazônia”. Eles lembram uma afirmação emblemática do jesuíta Cristóbal de Acuña, que integrou a expedição de Pedro Teixeira e se dedicou a investigar a diversidade das culturas indígenas e as possibilidades agrícolas da região — toda “expedição” podia esconder, no fim das contas, um projeto de “exploração”. Em 1641, em seu relato sobre o Grão Pará, Acuña vaticinou que Belém seria a dona do rio Amazonas, aquela que tem na mão “a chave de tudo”. A capital paraense, distribuidora e agenciadora de produtos e saberes amazônicos, porto fluvial que testemunhou tantos trânsitos, também significa uma nova rota para os trabalhos de Débora. Junto ao estranhamento radicalizado em Viagens filosóficas, trabalhos importantíssimos para a trajetória da artista como Jardim de aclimatação e Bússola de marear, recebem nova carga crítica.
O pensador Achille Mbembe argumenta que o empreendimento colonial foi uma das matrizes para as técnicas de exclusão e extermínio do nazismo, décadas mais tarde. A partir do conhecimento de todas as atrocidades nas Américas com os povos originários e os homens, mulheres e crianças sequestrados e escravizados que integrariam a diáspora africana em nosso território, não seria absurdo estender o raciocínio de Mbembe. Tornando o argumento do autor mais elástico, entenderíamos uma possível genealogia que liga o Holocausto dos genocídios do Brasil Colônia.
Pensar nisso reveste o trabalho de Débora, já bastante irônico com as ideias de classificação e de gabinete de curiosidade, de inúmeras outras camadas. Em um Brasil do século XXI pós-pandêmico e ainda açodado por bolsões negacionistas, é importante não deixar de afirmar a importância da ciência e da pesquisa, campos que abrangem as inquietações investigativas de todos os artistas. Mas é igualmente estratégico fustigar e desdobrar a História, de modo a entender as hierarquias, saques e violências cometidas em nome da ciência, da ordem e do progresso. Fez parte do empreendimento colonial a distinção entre o que era “civilizado” e “selvagem” ou “primitivo”, com a primazia intelectual e moral do primeiro grupo sobre o segundo. Tal hierarquia “civilizatória” é disciplinar e, como nos ensina Foucault, a sustentação da noção de poder nas sociedades modernas.
A mesa de espécies; a bússola que, em vez de apontar, questiona a noção de “Norte”; as imagens metálicas tilintando sobre os mapas da cobiça; o delírio e a febre que emana desses inventários do que é “estrangeiro”, tão importante para a formulação do que veio a se entender como “coleção” e “museu”. Tudo nesta mostra — ela própria montada como uma alegórica estufa, onde são exibidas variadas espécies — é tecido a partir de mergulhos vertiginosos em expedições da artista a arquivos históricos e, como, mais uma vez, escrevem Maneschy e Herkenhoff, “a história tem mais sentido quando confere espessura crítica ao presente”.
Mergulhar no rio do passado é também revivê-lo como outro. E é assim que (re)conhecer se transforma na mais transformadora das viagens.